Crônicas de Zephira #0

Zero

A história que vou lhe contar não tem precedentes, ninguém sabe onde surgiu ou de quem surgiu. Ninguém sabe bem se é uma história de muitos e muitos anos atrás ou se ela ainda irá acontecer… conta-se sobre que uma menina ainda aos doze anos de idade, em uma cidade do interior de Minas Gerais. Certa vez caminhando sobre os trilhos do trem que cruzava a cidade e que passava sempre às três da tarde foi surpreendida de tal forma que aqui ficaria marcado não apenas para ela, mas para toda uma geração. Esta história, repito, é comentada e não sabemos exatamente de onde ela surgiu, sei apenas o que vou lhe contar agora…

Aquele foi um péssimo dia ela, a parte da manhã havia terminado com muitas brigas entre a mãe o padrasto. Ela nunca conheceu bem o pai e sua relação sempre foi de medo e fuga entre os familiares mais próximos, havia ido à escola sozinha como de costume e a aula terminara bem antes do horário, às duas da tarde ela caminhava ao sol quente sobre os trilhos ofuscantes, seus olhos mal se abriam para enxergar o caminho em sua frente. Como sempre fazia ela andava distraída olhando os trilhos e imaginando como o sol ia sempre em sua frente refletido pelos trilhos brilhantes como prata. O calor não incomodava mais e nem mesmo o vento tirava sua atenção. Estava presa em seus pensamentos e caminhava sempre sobre os trilhos segurando a alça da mochila em suas costas enquanto tentava se equilibrar. Ouvi dizer que era uma sonhadora, mas nunca escolheu ser uma, simplesmente sonhava demais e alguns destes sonhos moldaram toda a sua história.
Naquele dia enquanto caminhava sonhou tão alto, mesmo acordada, que um de seus pés escorregou do trilho e ela caiu com tudo apoiando-se em um dos trilhos quentes. No mesmo instante soou duas buzinas, uma em cada direção e a menina estava nos trilhos do meio. Se estivesse correto, e estava, dois trens vinham com tudo em sua direção e o mais provável numa situação como aquela era não fazer nada já que estavam bem em cima dela. Isso porque nenhuma pessoa em sã consciência saberia lhe dar com uma situação extrema como essa e foi exatamente o que aconteceu.
Acontece que não estava na hora de passar aqueles dois trens, aquilo era uma impossibilidade tão grande que ela mesma não acreditou e após ouvir os apitos se levantou já em meio aos dois trens passando em alta velocidade, o que aconteceu após isso marcou para sempre a forma como ela via o mundo. Os dois trens passavam tão rápidos que olhando para cada um era como que olhar para um espelho manchado de laranja e marrom escuro, cores daqueles vagões. Porém em meio aos reflexos a menina teve uma visão que seria muito mais do que mais um sonho. Olhando em direção ao movimento dos vagões a menina avistou algo como outro mundo, escuro como a noite e seu reflexo nos vagões pareciam olhar para ela mesma com certa determinação no olhar, ainda assim um certo nível de tristeza fez com que ela olhasse para o outro lado. Fugindo do seu olhar no reflexo ela pode notar à sua esquerda vultos rápidos e brilhantes que manchavam o local escuro e sombrio enquanto no céu alguns raios podiam ser notados bem ao longe. Virando-se para trás ela conseguiu ver algo parecido com um novo mundo, o sol banhava todo o espaço onde se encontrava e um enorme planeta era visível no céu como que pronto para se chocar com a Terra. Era como que se tivesse próxima a prédios e vez por outra vultos de pessoas passando pelas suas vistas como que num filme antigo. Ao virar-se novamente para ver se tudo aquilo era verdade os dois trens terminaram de passar deixando apenas o forte vento atrapalhando seu cabelo.

A menina ainda sem saber o que pensar continuou caminhando em direção a usa casa. Voltou para sua vida pequena, cheia de mistérios, brigas e sonhos terríveis.
O tempo passou e ela se desenvolveu lenta e timidamente no mesmo lugar, até que muito tempo depois mudou para um estado vizinho onde poderia ter uma nova vida ou continuar a mesma que havia ganhado de seus pais. Com o tempo ela conseguiu um emprego, nada muito importante, era caixa em uma empresa pequena. Local de onde tudo começou a mudar.

Há muito tempo atrás. No ano de dois mil e vinte três aquela jovem, saía do seu trabalho com alguns documentos que deveriam ser entregues na segunda-feira pela manhã. Já passara das seis e estava escuro, as ruas já desérticas estavam tingidas por lâmpadas velhas e amareladas, poças d’água sujas refletiam as mesmas luzes nas paredes de setor 37 conhecida anteriormente por ilha de Vitória. O vento tentava aos poucos retirar os papeis de suas mãos enquanto ela quase que desesperadamente tentava coloca-los na velha mochila enquanto caminhava às pressas para o ponto de ônibus. Morava sozinha a pouco mais de três meses vivendo em um bairro bem solitário, nada de amigos e farra. Estava concentrada em seus próprios objetivos. No ponto de ônibus, barulhento por causa de dois adolescentes ouvindo música alta ela aguardava ao lado de uma senhora e outra pessoa que não havia notado, morava no setor 14 conhecido também como Cariacica, um velho nome que não é mais utilizado.

Após a unificação dos poderes mundiais e a criação de uma única força policial denominada de Tropa Vermelha da Paz não havia necessidade de nomes para lugares de forma que seria muito mais fácil para a tropa chegar a qualquer lugar usando números ao invés de grandes nomes desconhecidos, assim todos os locais receberam números, cada um identificado pelos nomes originais de cada estado. A tropa vermelha era formada de soldados enviados de diversas partes do mundo, ainda não havia uma linguagem oficial e os números facilitavam muito o controle do povo. Não eram mais tempos de badernas, carros correndo feito loucos nas ruas ou festas e até mesmo a alegria parecia ter tirado férias, o que importava naquela época era ter silêncio e cada vez menos problemas, ainda que esse suposto controle não funcionasse em todos os lugares os tempos eram de medo e silêncio em todos os lugares.

Ainda esperando o ônibus chegar ela sente o telefone vibrar em seu bolso, retira e liga a tela, mas ele já havia parado. Na tela uma sequência ilógica de números formando duas linhas no visor que ela ignorou facilmente e guarda ele na bolsa novamente prestando atenção na avenida aguardando seu ônibus enquanto o som alto ao seu lado aumenta ainda mais a sua dor de cabeça. Dois minutos se passaram e o celular vibra novamente, dessa vez ele consegue retirar e atender mesmo constando duas linhas de números no visor do aparelho.


- Olá… - Um forte ruído de interferência eletromagnética deixava a comunicação praticamente impossível entre ela e seja lá quem estivesse do outro lado.
- Boa noite… quem está falando? – Interrogou a moça.
- Alô!… - Chiado – Diana? Diana? Pode me ouvir?
- Oi, sim. Consigo te ouvir… muito mau, mas consigo ouvir…
- Diana… Diana? – mais chiados – Olhe para a esquina a um quarteirão do ponto em que você está… sou eu falando com você… - Diana virou para procurar olhando diretamente na direção que ele havia indicado.
- O que você quer? Porque não vem até aqui para falar comigo? – Questionou.
- Diana? Não ouço bem… estou falando de uma frequência fechada, muito restrita… Diana? Ainda está aí? Seja bem vinda… à quarta camada… - Chiados interromperam a voz do sujeito ao mesmo tempo em que um forte som foi emitido pelo aparelho em ondas tão variantes que pessoas ao redor puderam ouvir no momento em que ela caia no chão se contorcendo em dor tapando os ouvidos. Aquela sensação de realidade voltou à tona, como naquela tarde nos trilhos de trem, mas naquele momento Diana não sabia nada sobre o que estaria por vir.
.
.
.
.
.
.
correção 17/06/2017

Comentários

  1. Ahh,que saudade da "Quarta Camada"! Seu texto é maravilhoso! Parabéns!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. rsrs obrigado! Estou fazendo uma adaptação e acho que ele está mais preparado hoje do que antes.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

CRÍTICA TEXTUAL EM CRISE

Cego de Jericó - Adoração humilde

O QUE HOUVE COM O PROJETO BLUE BEAM?