Disciplinas Espirituais | D.A. Carson


Disciplinas Espirituais

D. A. Carson (Vol 36, Ed. 3)

Resumo
Há quase duas décadas, escrevi um ensaio intitulado "Quando a espiritualidade é espiritual? Reflexões sobre alguns problemas de definição". Gostaria de retomar um aspecto desse tema aqui. É importante relembrar a estrutura mais ampla da discussão. Os termos "espiritual" e "espiritualidade" tornaram-se notoriamente ambíguos. No uso comum, quase sempre carregam conotações positivas, mas raramente seu significado permanece consistente com o uso bíblico.

Há quase duas décadas, escrevi um ensaio intitulado "Quando a espiritualidade é espiritual? Reflexões sobre alguns problemas de definição". (1) Gostaria de retomar um aspecto desse tema aqui.

É necessário relembrar a estrutura mais ampla da discussão. "Espiritual" e "espiritualidade" tornaram-se palavras notoriamente confusas. No uso comum, quase sempre carregam conotações positivas, mas raramente seu significado permanece dentro da esfera do uso bíblico. As pessoas se consideram "espirituais" porque possuem certas sensibilidades estéticas, porque sentem algum tipo de conexão mística com a natureza ou porque defendem uma versão altamente privatizada de uma entre várias religiões (embora "religião" tenda a ter conotações negativas, enquanto "espiritualidade" traz conotações positivas). Sob os termos da nova aliança, no entanto, a única pessoa "espiritual" é aquela que tem o Espírito Santo, derramado sobre os indivíduos na regeneração. A alternativa, segundo a terminologia de Paulo, é ser "natural" — meramente humano — e não "espiritual" (1 Co 2:14). Para o cristão cujo vocabulário e conceitos sobre este tema são moldados pelas Escrituras, apenas o cristão é espiritual. Por uma extensão óbvia, os cristãos que demonstram virtudes cristãs são espirituais, uma vez que essas virtudes são fruto do Espírito. Aqueles que são "crianças em Cristo" (1 Co 3:1), se realmente estão em Cristo, são espirituais na medida em que são habitados pelo Espírito, embora suas vidas possam deixar muito a desejar.


No entanto (2), o Novo Testamento não rotula os cristãos imaturos como não espirituais, como se a categoria "espiritual" devesse ser reservada apenas para os mais maduros, a elite dos eleitos. Esse é um erro comum em grande parte da tradição católica romana de espiritualidade, na qual a vida espiritual e as tradições espirituais são frequentemente associadas a crentes que buscam transcender o comum. Essa vida "espiritual" é frequentemente ligada ao ascetismo e, por vezes, ao misticismo, a ordens de freiras e monges, e a uma variedade de técnicas que vão além do cristão comum, como João ou Maria.

Devido ao amplo uso das palavras "espirituais", muito além do uso presente no Novo Testamento, a linguagem das "disciplinas espirituais" também se expandiu para áreas que tendem a deixar inquietos aqueles que amam o evangelho. Atualmente, as disciplinas espirituais podem incluir leitura da Bíblia, meditação, adoração, doação de dinheiro, jejum, solidão, comunhão, atos de serviço, evangelismo, esmola, cuidado com a criação, diário, trabalho missionário e muito mais. Podem também incluir votos de celibato, autoflagelação e canto de mantras. No uso popular, algumas dessas chamadas disciplinas espirituais estão completamente divorciadas de qualquer doutrina específica, cristã ou não; são meramente questões de técnica. Por isso, às vezes as pessoas dizem: "Para sua doutrina, comprometa-se, sem dúvida, ao confessionalismo evangélico. Mas quando se trata de disciplinas espirituais, busque o catolicismo ou talvez o budismo."

O que é universalmente pressuposto pela expressão "disciplina espiritual" é que essas práticas têm a intenção de aumentar nossa espiritualidade. De uma perspectiva cristã, no entanto, não é possível aumentar a espiritualidade de alguém sem a presença do Espírito Santo e a submissão à sua instrução e poder transformador. As técnicas nunca são neutras. Elas estão invariavelmente carregadas de pressupostos teológicos, muitas vezes não reconhecidos.

Como devemos avaliar essa abordagem popular às disciplinas espirituais? Como devemos pensar nas disciplinas espirituais e sua conexão com a espiritualidade conforme definida pelas Escrituras? Algumas reflexões introdutórias:

1. A busca por conhecimento místico e não mediado de Deus não é sancionada pelas Escrituras e é perigosa em mais de um sentido. Não importa se essa busca ocorre dentro dos limites do budismo (embora budistas informados provavelmente não falem de "conhecimento místico não mediado de Deus" — as duas últimas palavras provavelmente seriam omitidas) (3) ou, na tradição católica, através de figuras como *Juliana de Norwich. Nenhuma dessas abordagens reconhece que nosso acesso ao conhecimento do Deus vivo é mediado exclusivamente por Cristo, cuja morte e ressurreição nos reconciliam com Ele. Buscar um conhecimento místico e não mediado de Deus é negar a necessidade da pessoa de Cristo e de sua obra sacrificial em nosso favor para conhecermos a Deus. Infelizmente, é fácil se encantar com experiências místicas, agradáveis e desafiadoras em si mesmas, sem conhecer o poder regenerador de Deus, fundamentado na obra de Cristo na cruz.

*N.E.: Juliana de Norwich foi uma mística cristã inglesa do século XIV, conhecida principalmente por suas visões espirituais e seus escritos. Juliana viveu como uma anacoreta (uma espécie de reclusa religiosa) em uma cela anexa à Igreja de São Juliano, em Norwich, Inglaterra, e passou boa parte de sua vida em contemplação e oração. Ela é venerada tanto na Igreja Católica quanto na Igreja Anglicana.

2. Devemos *questionar o que justifica incluir qualquer item em particular em uma lista de disciplinas espirituais. Para cristãos com algum senso da função reguladora das Escrituras, nada deve ser considerado uma disciplina espiritual se não for mencionado no Novo Testamento. Isso exclui não apenas a autoflagelação, mas também o cuidado com a criação. Sem dúvida, cuidar da criação é algo positivo: faz parte de nossa responsabilidade como administradores do mundo criado por Deus. No entanto, é difícil encontrar uma base bíblica para ver essa atividade como uma disciplina espiritual — ou seja, como uma prática que aumenta nossa espiritualidade. A Bíblia fala muito sobre oração e sobre esconder a Palavra de Deus em nossos corações, mas diz muito pouco sobre cuidado com a criação ou sobre cantar mantras.

*N.E.: Para os cristãos que acreditam na suficiência da Bíblia, especialmente dentro de uma perspectiva reformada, a noção de "disciplina espiritual" deve estar firmemente enraizada no que as Escrituras prescrevem diretamente. A função reguladora da Bíblia é, de fato, central para entender o que Deus considera como necessário para a nossa piedade e crescimento espiritual. Nesse sentido, práticas como a oração, o jejum e o estudo da Palavra são claramente estabelecidas como meios de graça no Novo Testamento.

3. Algumas das práticas listadas como disciplinas espirituais são ligeiramente ambíguas. Em certo sentido, a Bíblia não menciona diretamente o diário. No entanto, se o diário for apenas um rótulo conveniente para o autoexame cuidadoso, a contrição, a leitura bíblica refletida e a oração honesta, e o ato de manter um diário promove esses elementos, ele não deve ser descartado de forma categórica como a *autoflagelação. O apóstolo Paulo afirma que o celibato é excelente, desde que seja um dom (tanto o casamento quanto o celibato são descritos como charismata, “dons da graça”), e desde que seja em prol de um ministério mais eficaz (1 Cor 7). No entanto, nada nas Escrituras sugere que o celibato seja um estado intrinsecamente mais santo, e absolutamente nada, sob os termos da nova aliança, justifica o isolamento em mosteiros ou conventos de celibatários que se afastam do mundo físico para se tornarem mais espirituais. A meditação, por si só, não é um bem intrínseco. Muito depende do foco da meditação. É uma mancha imaginária em um lençol branco ou é a lei do Senhor (Sl 1:2)?

*N.E.: A autoflagelação refere-se à prática de infligir dor física a si mesmo como forma de disciplina ou penitência espiritual. Historicamente, isso foi comum em alguns grupos cristãos ao longo dos séculos, que acreditavam que a dor física poderia ajudar a expiar pecados ou trazer maior comunhão com Deus. Um exemplo clássico é o dos flagelantes, na Idade Média, que se chicoteavam publicamente como forma de arrependimento e purificação espiritual. No entanto, essa prática não tem suporte nas Escrituras.

4. Mesmo as disciplinas espirituais que virtualmente todos reconhecem como tais não devem ser mal compreendidas ou abusadas. A própria expressão "disciplina espiritual" pode ser potencialmente enganosa, como se houvesse algo intrinsecamente especial no autocontrole ou na imposição de autodisciplina que tornasse alguém mais espiritual. Supondo isso, pode-se facilmente cair na armadilha da arrogância; pior, isso frequentemente leva a julgamentos condescendentes, como pensar que outros não são tão espirituais quanto eu, já que sou disciplinado o suficiente para ter um excelente tempo de oração ou um esquema impecável de leitura da Bíblia. No entanto, o que verdadeiramente transforma não é a disciplina em si, mas o valor da tarefa realizada: o valor da oração, o valor de ler a Palavra de Deus.

5. Não é útil listar responsabilidades cristãs variadas e rotulá-las como disciplinas espirituais. Esse parece ser o raciocínio por trás de uma teologia que incorpora, por exemplo, o cuidado com a criação e a esmola como disciplinas espirituais. Mas, seguindo essa lógica, se por bondade cristã você massageia as costas de uma senhora idosa com torcicolo e dores no ombro, então essa massagem também se tornaria uma disciplina espiritual. Por essa linha de pensamento, qualquer ato de obediência cristã seria considerado uma disciplina espiritual, ou seja, algo que nos torna mais espirituais. Utilizar o conceito de disciplinas espirituais dessa forma gera duas consequências infelizes. Primeiro, se toda instância de obediência cristã for considerada uma disciplina espiritual, isso dilui o valor dos meios de graça enfaticamente destacados e ordenados pela Bíblia, como a oração e a leitura e meditação sérias na Palavra de Deus. Segundo, esse pensamento nos leva sutilmente a acreditar que o crescimento espiritual se dá exclusivamente pelo cumprimento de várias regras e pela obediência a múltiplas demandas. Embora a maturidade cristã seja inseparável da obediência, há também um foco importante no crescimento em amor, confiança, na compreensão dos caminhos do Deus vivo e na obra do Espírito Santo em nos encher e capacitar.

6. Por essas razões, parece sábio restringir o termo "disciplinas espirituais" às atividades prescritas pela Bíblia que são explicitamente designadas para aumentar nossa santificação, nossa conformidade com Cristo e nossa maturidade espiritual. Quando Jesus ora, em João 17, para que o Pai santifique seus seguidores por meio da verdade, ele acrescenta: "A tua palavra é a verdade". Não é de se surpreender que os crentes, por muito tempo, tenham chamado atividades como o estudo da verdade do evangelho de "meios de graça" — uma expressão mais precisa e menos suscetível a interpretações errôneas do que "disciplinas espirituais".

Notas originais:
Leitores de longa data do *Themelios se lembrarão de que os últimos anos da versão impressa deste periódico foram alguns dos melhores. Carl Trueman era, então, o competente editor do Themelios. Quando o periódico se tornou exclusivamente digital, sob os auspícios da The Gospel Coalition, Carl gentilmente continuou escrevendo uma coluna a cada edição — sem dúvida, uma das primeiras seções às quais os leitores recorriam. Anunciamos com pesar que Carl está se aposentando e expressamos nossa gratidão por sua contribuição singular. Soli Deo gloria.

*N.E.: Themelios não é um livro, mas uma revista acadêmica de teologia. É um periódico dedicado a estudos bíblicos, teologia e questões ministeriais, voltado principalmente para estudantes, pastores e estudiosos evangélicos. Originalmente, Themelios era publicado de forma impressa, mas agora está disponível exclusivamente em formato digital, sob a supervisão da The Gospel Coalition. A revista inclui artigos acadêmicos, resenhas de livros e colunas sobre temas teológicos e pastorais, com uma forte ênfase na ortodoxia evangélica.

Site oficial: https://www.thegospelcoalition.org/themelios/about/

1) JATOS 37 (1994): 381-94.
2) Nota do editor: Cf. DA Carson, “A cruz e o Espírito Santo: 1 Coríntios 2:6-16”, em A cruz e o ministério cristão: lições de liderança de 1 Coríntios (Grand Rapids: Baker, 2004), 43-66.1 Coríntios 2:6-16 (...)
3) Cf. Keith Yandell e Harold Netland, Budismo: Uma Exploração e Avaliação Cristã (Downers Grove: IVP, 2009).

FONTE: https://www.thegospelcoalition.org/themelios/article/spiritual-disciplines/

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